quarta-feira, 25 de abril de 2007

O Jornalismo Gonzo e a Subjetividade Desejável

Murilo Furlan Mellio

RESUMO

Este trabalho analisa a subjetividade no fazer jornalístico, focado, neste caso, no Jornalismo Gonzo. Para isso, trata do surgimento do Jornalismo Gonzo como um novo gênero jornalístico-literário na década de 1970 e de sua abordagem pouco convencional e sem pretensões objetivas. Assim, são destacadas as características principais dessa modalidade de jornalismo, que levam a conclusões sobre o Gonzo e sobre a própria forma de fazer jornalismo.

Palavras-chave: jornalismo gonzo – subjetividade – hunter thompson – objetividade.

O maior jornal em circulação no Brasil, a Folha de S. Paulo (2001: 22), sustenta em seu Manual da Redação que “A busca da objetividade jornalística e o distanciamento crítico são fundamentais para garantir a lucidez quanto aos fatos e seus desdobramentos concretos.” A busca pela objetividade – mesmo que alguns reconheçam ser impossível alcança-la – é constante e generalizada a partir das mudanças surgidas no jornalismo nos Estados Unidos no fim do século 19, entre elas a criação da técnica da “pirâmide invertida”. No entanto, existem posições destoantes. Há os que consideram a objetividade no jornalismo não só impossível de ser atingida, mas que também protestam contra a marginalização da subjetividade. Como argumenta Adelmo Genro Filho (1987):

A maioria dos autores reconhece que a objetividade plena é impossível no jornalismo, mas admite isso como uma limitação, um sinal da impotência humana diante da própria subjetividade, ao invés de perceber essa impossibilidade como um sinal da potência subjetiva do homem diante da objetividade.

O Jornalismo Gonzo, criado em 1970 nos Estados Unidos por Hunter S. Thompson, é uma valorização dessa característica subjetiva do ser humano na profissão de jornalista. Confundido frequentemente com o Novo Jornalismo – e às vezes considerado apenas uma vertente deste, o Gonzo na verdade é uma técnica a parte de apuração e apresentação dos fatos. “Ainda que tenham surgido na mesma época, Jornalismo Gonzo e Novo Jornalismo são gêneros jornalístico-literários distintos entre si”, sustenta André P. Czarnobai (2003), em sua monografia Gonzo – o Filho Bastardo do New Journalism.

Na década de 60, Thompson, o fundador do novo estilo, viveu durante dezoito meses entre os membros da gangue de motociclistas Hell's Angels, que resultou em uma reportagem em 1965 e depois virou livro. Durante esse período, participou integralmente de todas atividades da gangue, inclusive de brigas e uso de drogas. A primeira reportagem considerada gonzo, no entanto, só aconteceu em junho de 1970 com o título The Kentucky Derby is Decadent and Depraved, publicada em uma revista de esportes chamada Scanlan's Monthly. O que era pra ser uma matéria sobre um evento esportivo acabou sendo uma forte crítica aos hábitos da população local. Nos anos seguintes, Thompson seguiu praticando o Jornalismo Gonzo em reportagens para revistas como a Playboy e Rolling Stone, San Francisco Chronicle, Esquire, Vanity Fair, e na publicação de livros, com destaque para Fear and Loathing in Las Vegas (lançado no Brasil em 1984 pela editora Anima como Las Vegas na Cabeça), sua obra mais conhecida. Por ser o criador e o maior ícone do estilo, Thompson, que morreu em 2006, foi e ainda é fonte de inspiração para jornalistas gonzo.

No jornalismo tradicional, segundo Afonso de Albuquerque (Campbell; Tuchman. Apud Albuquerque: 2000: 77), o “ideal da objetividade desempenhou um papel importante na afirmação dos jornalistas como intérpretes especializados da realidade, dotados de uma autoridade própria, não subordinadas a outros agentes sociais e políticos”, isto também através de recursos narrativos como “o uso de uma perspectiva em terceira pessoa, a estrutura de pirâmide invertida das notícias, a separação das hard news da opinião e das notícias de interesse humano, o texto pouco adjetivado, etc”. O Jornalismo Gonzo, na sua maneira iconoclasta de ser, tratou de rejeitar essa máscara chamada objetividade. O Gonzo abriu as portas para um relato assumidamente subjetivo, sem pretensões de fazer uma abordagem imparcial e de esconder convicções, medos, ideologias, paixões, opiniões e interesses do repórter que certamente influenciam qualquer material jornalístico. Segundo a Wikipédia¹, “Gonzo é um estilo de narrativa em jornalismo, cinematografia ou qualquer outra produção de mídia em que o narrador abandona qualquer pretensão de objetividade e se mistura profundamente com a ação.”

O Jornalismo Gonzo não possui manifestos ou regras e não existe uma definição única do que se trata. Todavia, são evidentes algumas características particulares, que vão desde a coleta de dados à redação da reportagem. A primeira delas é o jornalista vivenciar a experiência, tornando o narrador um dos personagens da história. Indo muito além de testemunhar um fato ou ação, ou entrevistar alguma testemunha, o jornalista gonzo participa da ação, para entrar mais a fundo no assunto e proporcionar ao leitor uma maior proximidade com a experiência. A coleta de dados pode durar meses ou anos, e exige uma grande aproximação entre o investigador e o que é investigado, como conceitua Czarnobai (2003):

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¹Wikipédia é uma “enciclopédia livre” virtual disponível no sítio www.wikipedia.org.br

Na falta de termo melhor, denominaremos a técnica de osmose, referenciando o fenômeno biológico no qual dois fluídos misturam-se gradualmente através de uma membrana porosa. Fazendo uma comparação, o primeiro fluído é o Gonzo Jornalista e o segundo, o objeto de sua investigação. A membrana porosa é o ato da reportagem em si, pois é através dela que os dois mundos interferem um no outro. Dessa forma é correto dizer que o repórter gonzo altera o objeto de sua reportagem da mesma forma que o objeto altera o próprio repórter. É quase como se o jornalista precisasse personificar o objeto de sua reportagem.

Czarnobai (2003) também cita, como exemplo, as experiências de John Sack e George Plimpton. Este queria escrever sobre o Detroit Lions, uma equipe de futebol americano e, para isso, julgou ser insuficiente apenas acompanhar os treinamentos ou entrevistar os jogadores. Então, conviveu com os jogadores, exercitou-se com eles e chegou mesmo a disputar uma partida da pré-temporada da National Football League, de 1966. John Sack, convenceu o exército norte-americano a deixá-lo incorporar-se a uma companhia de infantaria e participar junto aos soldados de todos os treinamentos militares para depois ser enviado ao Vietnam, na primeira linha de combate:

Não se pode negar que a presença participativa de Sack entre os soldados da Companhia Minterferiu na rotina de todos aqueles homens, assim como Plimpton fez com os jogadores do Detroit Lions e Thompson com os Angels. Da mesma forma, Sack precisou, de uma forma ou de outra, portar-se como um soldado, assim como Plimpton foi, de fato, um jogador de futebol americano durante o período em que conviveu com eles.

Outra característica fundamental do Jornalismo Gonzo é sua narrativa em primeira pessoa, que nega o mito da imparcialidade jornalística sem, no entanto, comprometer o objetivo de informar alguma coisa a alguém. Sobre a objetividade jornalística, Jay Rosen (2003: 79) comenta que:

É uma técnica de persuasão que podemos colocar ao lado de muitas outras. Todas estas técnicas têm suas vantagens e desvantagens, mas a técnica de persuasão preferida do jornalista é dizer: “Estou apenas a entregar-vos os factos. Não tenho qualquer envolvimento com os factos. Os factos não me preocupam particularmente. Não é um problema meu. Digo apenas as coisas tal como são.”

A narrativa gonzo, entretanto, quebra essa ilusão de distanciamento utilizando, ao invés da calculada distância da terceira pessoa, um narrador em primeira pessoa que deixa claro não só que ali existe um mediador entre o fato a ser relatado e o relato, como não esconde que esse mediador é carregado de subjetividade. Isso ocorre por ser um estilo de reportagem mais focado na experiência vivida pelo repórter do que no evento em si, e o relato se dá através do ponto de vista de quem o viveu, resultando em um relato mais humano e verossímil. Assim, o Jornalismo Gonzo abre mão da entrevista como instrumento de pesquisa para focar sua atenção em um personagem-narrador que é o próprio repórter, o protagonista da ação. Chris Simunek (1998: 176), um editor da revista High Times, é um dos principais representantes do Jornalismo Gonzo atualmente e, portanto, suas reportagens sempre possuem caráter pessoal que só o foco narrativo na primeira pessoa é capaz de permitir. No seu livro Paraíso na Fumaça, ele relata uma experiência traumática que teve durante uma celebração Rastafari de que participou em Kingston, na Jamaica.

Disse a ele que estávamos à beira do linchamento. Ele pegou pesado com os caras que nos perseguiam, dizendo que o jeito como estavam nos tratando não agradava a Jah nem um pouquinho.

- Não se preocupe com a molecadinha. O O’binghi é lindo, meu.

Ficamos juntos do Bigga até que o táxi chegou. Eu não conseguia falar. Fiquei ali de pé, revendo as palavras de paz que tinha ouvido dos meus amigos rasta durante toda aquela semana. Eu me sentia vítima da mesma merda racial que sempre pensei que eles abominassem. Ao pegarmos a estrada, o motorista notou meu olhar vazio e perguntou o que tinha acontecido. Eu estava tão atormentado que nem deu pra responder.

Outra característica marcante do Jornalismo Gonzo é o uso de ironia e sarcasmo como senso de humor, que resulta em uma abordagem cômica e ácida, tanto das situações quanto dos próprios repórteres, satirizando a imagem de sérios e respeitáveis dos jornalistas, frequentemente vistos como porta-vozes da verdade incontestável. Isso se mostra claro em outro trecho de Paraíso na Fumaça, de Simunek (1998: 50), durante um encontro de motociclistas na cidade de Sturgis, do qual participou:

- Gene, você é um jornalista. Eu acho que deve explorar todos os aspectos do evento. A minha sugestão é começarmos por aqui, depois, é claro, dum beque pra despertar a inspiração do artista que existe em você, não é?

- Por que não? – eu respondi – Olhar pruma mulher nua é uma atividade que transcende qualquer classificação sociopolítica, e eu certamente preciso da dose adequada de objetividade pra assegurar que a minha história contenha a verdade absoluta e imparcial!

O uso de drogas pelo do jornalista gonzo, inclusive durante o seu trabalho, ficou celebrizado pela fama – correta – de Hunter Thompson consumir drogas em grande variedade e quantidade durante a confecção de suas reportagens. No entanto, segundo Czarnobai (2003):

Um dos maiores erros que se comete na tentativa de conceituar Gonzo Journalism é reduzi-lo à simplicidade de ser apenas uma forma de jornalismo feita sob o efeito de drogas. Gonzo é também isto, mas não apenas isto. Apesar de ser uma das características mais determinantes para classificar um texto como Gonzo, o uso de drogas não é a única. De nada adianta o uso de drogas se o texto não for redigido em primeira pessoa ou adotar um caráter mais austero, por exemplo.

Para ser gonzo, portanto, o jornalista não precisa consumir drogas, ainda que seja uma prática bastante recorrente entre os autores modernos. Esse hábito de consumo de entorpecentes, no entanto, assim como a abordagem cômica e às vezes irônica do rendem duras críticas ao gênero jornalístico, acusado de falta de seriedade.

A peculiaridade mais controversa do estilo Gonzo, no entanto, é uma afronta total a um dos princípios básicos do jornalismo, a barreira que separa o jornalismo da ficção: o compromisso com a verdade. Segundo o Manual da Redação da Folha de S. Paulo (2001: 24),

Reportagens têm por objetivo transmitir ao leitor, de maneira ágil, informações novas, objetivas (que possam ser constatadas por terceiros) e precisa sobre os fatos, personagens, idéias e produtos relevantes. Para tanto, elas se valem de ganchos oriundos da realidade, acrescidos de uma hipótese de trabalho e de investigação jornalística.

Czarnobai (Othitis Apud Czarnobai: 2003), citando Christine Othitis, destaca que “Thompson não diferencia o fato da ficção na maioria de sua obra. Ele deixa para o leitor decidir qual é qual”, o que põe em dúvida a veracidade de muitas histórias descritas nos seus relatos. O uso de ficção em textos gonzo, no entanto, não impede de serem jornalísticos. A seguir, Czarnobai (2003) comenta um trecho, presente no começo de Las Vegas na Cabeça, em que a presença de um jovem caroneiro o próprio Thompson às vezes reconhece como real, outras como pura invenção. Contudo, mesmo não existindo na realidade, o personagem não compromete a veracidade do relato, e pode até mesmo contribuir para o desenrolar da narrativa:

Se Thompson tivesse optado por fazer apenas uma digressão interna falando sobre a geração pós-hippie (como ele de fato faz, durante todo o capítulo 8 do livro) se poderia dizer que, jornalisticamente, o texto estaria mais correto. Por outro lado, a ausência de toda a cena - desde as impressões de Thompson sobre o carona até os diálogos - deixaria não só a narrativa menos interessante como tornaria muito mais frio o tratamento que Thompson dispensaria a estes temas em referências futuras.

Sendo assim podemos concluir que a inserção da ficção no Gonzo Journalism não só contribui para a desenvoltura da narrativa como ainda fornece um nível de informação muito mais profundo do que uma reportagem tradicional, o que vem ao encontro da definição de Faulkner segundo a qual a melhor ficção é muito infinitamente mais verdadeira que qualquer tipo de jornalismo. Também podemos perceber que a ficção é um elemento inserido de uma forma proposital e calculada, e não aleatória como poderia parecer num primeiro momento.

Este artigo argumenta pela valorização de um jornalismo menos neutro portanto mais engajado; por uma aproximação mais subjetiva da realidade, consequentemente mais humana. Jay Rosen (2003: 84) analisa que:

Em poucos anos será crítico para as pessoas no jornalismo declararem um fim à sua neutralidade em certas questões. (...) À medida que estes comecem a compreender que não podem dar-se ao luxo de ser neutros nestas questões, começarão talvez a lutar pela sua própria filosofia que consiga substituir a objectividade por algo mais forte e, se posso expor as coisas assim, mais inspirador.

A abordagem Gonzo do jornalismo é frequentemente desvalorizada e desacreditada por seus traços subjetivos e pouco convencionais. Porém, pode materializar um jornalismo mais saboroso de ser apreciado, além de feito com menos medo de não ser verdadeiro – e assim tornar-se mais verdadeiro.

Referências Bibliográficas

ALBUQUERQUE, Afonso de. A narrativa jornalística para além dos fait-divers.

UFJF, v.3, n.2. Juiz de Fora: Lumina, 2000.

CZARBONAI, André Felipe Pontes. Gonzo – o Filho Bastardo do Novo Jornalismo. Porto Alegre, 2003.

Disponível em http://www.qualquer.org/gonzo/monogonzo/monogonzo01.html

GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide - para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre, 1987.

Disponível em: http://www.adelmo.com.br.

GOMES, Felipe Sáles; LOURENÇO BATISTA, Renata; VEIGA DA COSTA, Klenio. Jornalismo Narrativo: Eficiência e viabilidade na mídia impressa. Rio de Janeiro, 2004.

Disponível em http://www.bocc.ubi.pt/pag/costa-klenio-jornalismo-narrativo.pdf

LÍNGUA PORTUGUESA. São Paulo. Ano 2, número 14. Editora Segmento: 2006.

MANUAL DA REDAÇÃO: FOLHA DE S. PAULO. São Paulo: Publifolha, 2001.

ROSEN, Jay. Para Além da Objectividade. In: Traquina, N. Jornalismo Cívico. Lisboa. Livros Horizonte, 2003.

SIMUNEK, Chris. Paraíso na Fumaça. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2002.

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